Carta aberta de imigrantes: "Queremos ser parte da solução, porque já somos parte da sociedade"
Um grupo de imigrantes e descendentes de estrangeiros em Portugal alertou esta quinta-feira para a agenda pública e política em Portugal que visa quem não nasceu no país e para o crescimento da xenofobia e racismo associados aos discursos anti-migrações.
"O perigo não está apenas nas palavras agressivas, está também na indiferença que normaliza a xenofobia e o racismo", escrevem os autores da carta aberta, promovida pela plataforma Consenso Imigração, para assinalar o Dia Mundial dos Migrantes, que se celebra esta quinta-feira.
"A carta nasce da preocupação generalizada sobre as situações sociais, e mais especificamente sobre imigração, que têm marcado a agenda pública aqui em Portugal. Nasce desta vontade dos imigrantes se fazerem ouvir", porque "está a haver muito ruído em torno deste tema", sem que sejam ouvidas as pessoas que "vivem na pele os problemas", afirmou um dos promotores, o guineense Tcherno Baldé a viver em Portugal desde 2012, onde é estudante de doutoramento.
O objetivo é promover um ambiente coletivo em que os "imigrantes possam trazer as suas histórias e as suas narrativas para o debate público", de modo a "serem tidos em conta na definição de políticas públicas".
Hoje, "os imigrantes acabam por ser reduzidos a problemas e a serem culpados de todos os problemas da sociedade portuguesa, num discurso que tem ganho espaço" na opinião pública e a "única forma de contrariar isso é trazer uma nova forma de esperança, histórias dos imigrantes, as suas vozes e as suas vivências".
Porque se "Portugal prosperar, vai prosperar para todas as pessoas, nativas ou imigrantes. Mas se falhar, falhará para todos", avisou o dirigente da Academia de Líderes Ubuntu, um projeto de capacitação para tornar jovens em agentes de transformação nas suas comunidades.
Na "carta dos imigrantes para um consenso na imigração", os autores defendem que isso só é possível se existir um reconhecimento do trabalho dos imigrantes e "coragem de enfrentar o racismo e a xenofobia, mesmo quando se escondem em gestos subtis".
Defendem também um "compromisso de garantir vias claras, céleres e humanas de documentação" e um "investimento real na integração", como "língua, habitação, participação social e política, reconhecimento de qualificações ou mediação cultural" e "a recusa de narrativas que colocam uns contra os outros".
"Queremos direitos e deveres" e queremos ser parte da solução, porque já somos parte da sociedade", consideram.
"Somos mulheres e homens que vieram de diferentes geografias, línguas, culturas e histórias que não cabem em números nem em estatísticas. Trouxemos na bagagem memórias e expectativas, e também dúvidas e medos", recordam os autores, que integram, entre outros nomes, a diretora da Obra Católica Portuguesa das Migrações.
"Alguns chegaram sozinhos, outros trouxeram crianças ao colo, outros ainda nasceram já em Portugal, mas carregam no corpo, no nome ou na história familiar as marcas de uma origem que nem sempre é reconhecida como parte legítima deste país", pode ler-se no documento.
A "Constituição da República Portuguesa afirma que Portugal assenta na dignidade da pessoa humana e na vontade popular" e "este princípio deveria bastar", mas, "para muitos de nós, a realidade nem sempre o confirma", com os atrasos burocráticos, suspeita permanente ou "cada comentário que reduz a nossa origem a um estereótipo".
O caminho da inclusão "faz-se em conjunto — entre quem chega e quem aqui vive há muito tempo", porque "Portugal tem sido também um lugar de encontro, aprendizagem e construção".
"Vibramos com a seleção nacional, cada um na sua língua e nas suas vivências, porque essa equipa também mostra que Portugal é feito de origens diversas", pode ler-se, apontando o caminho da inclusão e integração.
Contudo, "existem vivências que magoam", como a "dificuldade em obter ou renovar documentos", que "transforma a vida num intervalo permanente", ou a "irregularidade involuntária" que "abre portas a abusos", com "salários por pagar, ameaças veladas e medo de denunciar".
"Nos últimos anos, temos assistido ao crescimento de discursos políticos que alimentam medo, desinformação e hostilidade. Não falam connosco, falam sobre nós - quase sempre sem nos ouvir. Mas nós ouvimos tudo, mesmo quando se fala como se não estivéssemos a ouvir", recordam.