Bagos D'Ouro: a educação como caminho para quebrar ciclos de pobreza no Douro

A associação Bagos D'Ouro está presente em oito concelhos: Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Mesão Frio, Murça, Sabrosa, São João da Pesqueira e Tabuaço.
Mariana Moniz
Mariana Moniz Jornalista
18 dez. 2025, 07:00

Bagos D'Ouro
Fotografia: Equipa da Associação Bagos D'Ouro | Foto de cortesia

No imaginário coletivo, o Douro é sinónimo de beleza natural, vinhas em socalcos e património mundial. Mas por detrás do postal turístico, persiste uma realidade social marcada por pobreza estrutural, baixos níveis de escolaridade e falta de oportunidades para as gerações mais novas. É neste território, onde o elevador social continua avariado, que a Associação Bagos D’Ouro desenvolve, desde 2010, uma intervenção educativa de longo prazo, apostando na educação como instrumento real de transformação social.

Criada em 2010 por iniciativa de Luísa Amorim e do padre Amadeu Castro, a Bagos D’Ouro começou por intervir em apenas dois concelhos - São João da Pesqueira e Sabrosa - mas a motivação foi clara desde o início. “A ideia era garantir que as crianças do Douro pudessem ter oportunidades educativas semelhantes às das crianças que crescem mais perto do litoral, em zonas com mais recursos e mais estímulos”, explica ao Conta Lá, Mafalda Ferrão, coordenadora social da associação. A partir daí, o projeto foi crescendo de forma gradual e sustentada, envolvendo produtores e parceiros da região, até chegar à presença atual em oito concelhos do Douro, sem abdicar de um modelo de acompanhamento próximo e continuado.

Os números ajudam a contextualizar a urgência da intervenção. No Douro, a taxa de analfabetismo é de 5,4%, quase o dobro da média nacional. Mais de metade da população com mais de 15 anos tem apenas o ensino básico e o PIB per capita da região fica bastante abaixo da média portuguesa. Estes indicadores traduzem-se, na prática, em menos estímulos, menos referências académicas e menor expectativa de sucesso escolar.

Portugal continua a ser um dos países europeus onde a origem socioeconómica pesa mais nos resultados escolares. Em contextos como o Douro, a desigualdade começa cedo e tende a perpetuar-se ao longo de gerações. “Muitos dos nossos jovens são a primeira geração das suas famílias a chegar à universidade”, sublinha Mafalda Ferrão. “E isso diz muito sobre o ponto de partida.”

A Bagos D’Ouro define-se de forma clara: não é uma associação assistencialista nem um apoio social clássico. O foco está na educação, no desenvolvimento pessoal e na construção de projetos de vida sustentáveis. “A nossa missão é dar iguais oportunidades educativas a crianças e jovens numa das regiões mais pobres da União Europeia”, afirma a coordenadora social. “Mas é também dar esperança num futuro diferente e quebrar um ciclo de baixa escolaridade que se repete há décadas.”

Atualmente, a associação está presente nos concelhos de Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Mesão Frio, Murça, Sabrosa, São João da Pesqueira e Tabuaço, acompanhando mais de 250 crianças e jovens, de cerca de 140 famílias. O objetivo declarado é chegar a toda a região, mas sempre com prudência. “Não crescemos em massa. Crescemos com responsabilidade”, reforça Mafalda Ferrão.

 

Um acompanhamento que começa cedo e só termina na vida ativa

Uma das principais singularidades da Bagos D’Ouro é o modelo de acompanhamento de longo prazo. As crianças entram preferencialmente no primeiro ciclo e são acompanhadas ao longo de todo o percurso escolar, só deixando o programa quando se integram no mercado de trabalho. “Este é um compromisso muito exigente, tanto para nós como para eles”, explica a coordenadora. “Mas é também o que faz a diferença.”

Cada concelho tem um psicólogo no terreno - designado internamente como gestor do concelho - que acompanha semanalmente as crianças e jovens nas escolas. O trabalho vai muito além do apoio ao estudo: inclui regulação emocional, organização, orientação vocacional, desenvolvimento de competências sociais e criação de rotinas.

“Sabemos que muitos destes jovens vivem em contextos pouco estimulantes”, diz Mafalda Ferrão. “Não têm livros em casa, não têm espaços de estudo, não têm referências académicas próximas. Por isso, o nosso trabalho começa muitas vezes por aí.”

No centro da metodologia está o chamado ‘Compromisso Bagos D’Ouro’, um acordo formal assinado anualmente por cada criança ou jovem. Nele são definidos objetivos académicos, pessoais e sociais, adaptados à idade e ao momento de vida de cada um.

“Não se trata apenas de notas”, explica Mafalda Ferrão. “Há objetivos ligados ao comportamento, à integração social, à autonomia ou à gestão emocional. Avaliamos o percurso, não apenas o resultado final.”

No final de cada ano, os compromissos são avaliados numa cerimónia pública, onde são atribuídos diplomas de percurso e prémios de mérito. “Um aluno pode ainda ter dificuldades académicas, mas se estiver num caminho claramente ascendente, isso tem de ser reconhecido”, defende.

 

Trabalhar com as famílias para que o caminho seja possível

A intervenção da Bagos D’Ouro não se limita às crianças. As famílias são parte integrante do processo. Para além do contacto regular, há visitas domiciliárias, definição de compromissos familiares e envolvimento em atividades coletivas.

“O sucesso de uma criança depende muito do contexto familiar”, reconhece Mafalda Ferrão. “Quando os pais valorizam a escola, mesmo com poucos recursos, tudo se torna mais fácil. O grande desafio surge quando essa valorização não existe.”

Ainda assim, a associação insiste numa lógica de proximidade e confiança. As famílias são envolvidas em projetos de promoção da leitura, iniciativas artísticas, festas comunitárias e momentos simbólicos que reforçam o sentimento de pertença. “A Bagos D’Ouro acaba por ser uma espécie de família alargada”, descreve a coordenadora.

O impacto da intervenção raramente é visível no primeiro ou segundo ano. Muitas vezes, só ao fim de três ou quatro anos se começa a notar uma inversão de percurso. “Há jovens que chegam sem esperança, sem acreditar em si próprios”, explica Mafalda Ferrão. “O nosso trabalho é tornar visível aquilo que eles ainda não conseguem ver.”

Os números refletem esse impacto gradual: dezenas de jovens no ensino superior, outros já integrados no mercado de trabalho, melhorias significativas em autoestima, persistência, capacidade de decisão e autorregulação emocional. Mais de 95% dos jovens dizem-se extremamente satisfeitos com o acompanhamento da associação.

Associação Bagos D'Ouro

 

Histórias que dão rosto às estatísticas

Os números ajudam a dimensionar o impacto da Bagos D’Ouro, mas é nas histórias individuais que o alcance do trabalho da associação se torna mais visível. Junior Vilela tinha apenas 11 anos quando entrou no programa. Chegava à escola com dificuldades económicas tão evidentes que, muitas vezes, não tinha sequer tempo ou condições para comer de manhã. Carregava também, em silêncio, um peso emocional que se refletia no comportamento e na forma como se relacionava com os outros.

“Apesar de ter boas notas, eu sentia-me muito inferior às outras pessoas. Sofria bullying e era extremamente introvertido. Se alguém de fora da minha família tentasse falar comigo, eu simplesmente não conseguia responder”, começa por relembrar em entrevista ao Conta Lá.

Foi a diretora de turma quem sinalizou o caso, numa altura em que a Bagos D’Ouro começava a chegar ao concelho de Alijó. “Ela percebeu que eu era um excelente aluno, mas que havia problemas socioeconómicos em casa. Inscreveu-me sem pensar duas vezes”, recorda. O acompanhamento começou no início do sexto ano de escolaridade e revelou-se determinante num dos períodos mais difíceis da sua infância. “Eu estava mesmo de rastos. Se não fosse a Bagos D’Ouro, teria sido muito difícil superar aquilo. Eu não tinha caminho, não sabia o que fazer.”

Mais do que o apoio material - como o fornecimento de materiais escolares ou o acompanhamento regular - foi o trabalho psicológico e humano que marcou a diferença. “Deram-me uma mão amiga quando eu mais precisava. Ajudaram-me a perceber que eu tinha valor e que conseguia ultrapassar os problemas que estava a viver.” Ao longo do tempo, Junior foi ganhando confiança, ferramentas emocionais e capacidade de comunicação. “Hoje falo com qualquer pessoa. Posso estar na rua e começo uma conversa sem problema. Isso era impensável naquela altura.”

O impacto estendeu-se também à família. Inicialmente desconfiados, os pais rapidamente perceberam a mudança. “Tirou-lhes um grande peso de cima. Eles viam que eu chegava a casa mais alegre, com novas formas de pensar. Perceberam que havia ali um apoio que eles, sozinhos, não conseguiam dar.” A partir do sétimo ano, o bullying deixou de marcar o quotidiano deste jovem e a vida académica estabilizou. “Senti-me mais livre. Livre desses problemas.”

Atualmente com 23 anos, Junior estuda Engenharia Civil na área da hidráulica, na Universidade do Porto, e continua a ser acompanhado pela Bagos D’Ouro, agora num apoio mais direcionado para o ensino superior. “Ajudam-me muito na organização do estudo, no planeamento, no acesso a materiais. Se precisar de alguma coisa, estão sempre disponíveis.” Participa regularmente nas atividades da associação e não falta quando é chamado para dar o seu testemunho. “Ser porta-voz é um orgulho enorme. Quero devolver, de alguma forma, tudo aquilo que fizeram por mim.”

A sua história é também um reflexo das desigualdades territoriais que persistem no país. “Eu adoro o Douro e gostava de poder trabalhar na minha região, mas sei que as oportunidades são muito menores. No interior existem pessoas brilhantes. Não é falta de capacidade, é falta de oportunidades.” Para Junior, a Bagos D’Ouro representa precisamente essa ponte: “Ajuda-nos a perceber que podemos ir mais longe e que o lugar de onde vimos não tem de limitar aquilo que podemos ser.”

É essa mesma lógica de acompanhamento prolongado que Mafalda Ferrão identifica no percurso de Ana Micaela Mesquita, natural de São João da Pesqueira, outra jovem cujo caminho ilustra o impacto do trabalho da associação. Aos 15 anos, Ana saiu da região para frequentar um curso profissional de design de moda no Porto, numa mudança exigente para alguém que cresceu num contexto de forte vulnerabilidade, marcado por instabilidade familiar e um percurso escolar frágil. “Era uma jovem com pouca confiança em si própria e com expectativas muito reduzidas em relação ao futuro”, explica Mafalda. A ideia de prosseguir os estudos parecia distante, quase irreal.

Ao longo dos anos, o acompanhamento foi feito passo a passo, respeitando o ritmo da jovem e trabalhando não apenas as notas, mas a construção da autoestima e da autonomia. “Não basta dizer a um jovem que ele é capaz. É preciso estar presente, criar referências, exigir e apoiar ao mesmo tempo”, sublinha a responsável. No caso de Ana Micaela Mesquita, esse trabalho deu frutos: contra todas as expectativas iniciais, conseguiu prosseguir os estudos e desenhar um projeto de vida que antes não conseguia sequer imaginar.

Para Mafalda Ferrão, histórias como a de Ana e a de Junior desmontam a ideia de que a origem social determina inevitavelmente o destino. “O talento existe. O que muitas vezes não existe são oportunidades, tempo e alguém que não desista ao primeiro obstáculo.” São esses percursos, construídos longe dos holofotes, que dão rosto às estatísticas e mostram que, quando o acompanhamento é consistente, o elevador social pode voltar a funcionar.

Educação como herança para a próxima geração

Apesar dos resultados, o desafio maior mantém-se: conseguir que os jovens regressem ou permaneçam no Douro. Atualmente, cerca de metade dos jovens acompanhados está integrada profissionalmente na região, enquanto a outra metade trabalha fora.

“O Douro ainda oferece poucas oportunidades”, admite Mafalda Ferrão. “Mas precisamos de preparar estes jovens para serem também criadores de oportunidades, empreendedores, agentes de mudança.”

A associação está a desenvolver novos programas focados na empregabilidade e no empreendedorismo, conscientes de que, nos próximos anos, muitos jovens irão concluir a universidade quase em simultâneo. “Se não começarmos a trabalhar isto cedo, estaremos a falhar uma parte essencial da nossa missão.”

Para a Bagos D’Ouro, o verdadeiro sucesso não se mede apenas em diplomas ou empregos. Mede-se na possibilidade de uma mudança intergeracional. “Acreditamos que estes jovens vão educar os seus filhos de forma diferente”, afirma Mafalda Ferrão. “Quando isso acontecer, saberemos que o nosso trabalho teve um impacto real.”

Num território onde a paisagem é mundialmente reconhecida, a Bagos D’Ouro trabalha para garantir que o futuro do Douro não dependa apenas do que se vê, mas sobretudo do que se constrói - criança a criança, compromisso a compromisso, geração após geração.